Na
minha próxima visita, estarei declinando perfeitamente...
Prometi
em um russo para iniciantes.
Já desconfiava que não haveria uma próxima vez. Não porque não quisesse, desejava muito voltar a Moscou. Mas a vida me avisava sutilmente que não
permitiria repetições de extravagâncias como aquela semana de neve, socialismo e eterno suspense em novembro de 1987.
Era agora ou nunca. Nominativo, acusativo, dativo e genitivo. Casos que eu já
conhecia do alemão. E mais o instrumental e o prepositivo. Presentes do russo
para a minha vida gramatical.
Tatjana,
em um belo vestido de tecido brilhante, sorriu sem entender bem a piada.
Já nasceu declinando e toda brilho com seus cabelos e olhos claros de filme de
Walt Disney. Coitadinha, deve ter pensado, enquanto me mostrava seus perfeitos dentes
moscovitas de uma brancura hollywoodiana. Está tão mal-vestida que o povo
deve pensar que ela é daqui. Uma russa qualquer sob campanha anti-alcool de Mikhail Gorbachev. Uma russa que não sabe declinar. Nunca pensei que uma jovem sul-americana que vive em Berlim Ocidental usasse um casaco de segunda mão tão feio. Com tanta coisa bonita para se comprar por lá. Quem me
dera.
Tatjana
falava, sorria e declinava. Hesitei um pouco antes de chamá-la de Tatjana. Um
nome tão óbvio para uma russa. No jantar luxuoso dos misteriosos italianos,
seu dever era ser “bella”. E sorrir. Nem declinar teria sido necessário, pois aqueles homens de meia idade em ternos escuros -figurantes de mafiosos ou mafiosos verdadeiros- não falavam
russo. Dias antes, eu tinha servido de tradutora para uma conversa entre
dois outros italianos e duas senhoras no restaurante do hotel.
Alguém me disse mais tarde que elas eram prostitutas locais. Meretrizes de
meia idade com ares de donas de casa e simpático espírito de camponesas
curiosas. Será que os italianos sabiam disso? Provavelmente, pois
pareciam conhecer muito bem a cidade dos restaurantes sem comida e dos garçons
sem modos.
O
resto do meu grupo de russo intensivo da Universidade Livre de Berlim não se
interessava por italianos ou russas, bem ou mal-vestidos. Andavam orgulhosamente pela
Moscou dos agasalhos pesados, dos gorros de pele e dos olhares desconfiados ou
humilhados. Circulavam na capital das deslumbrantes estações de metrô, dos
taxistas subornáveis e dos museus com imagens de fábricas e operários. Ouviam da guia
local histórias de estudantes reprovados que se atiravam das janelas dos alojamentos
estudantis. Com pausas para uma tigela de borsch e longos banhos de banheira no
quarto do nosso hotel, esplendidamente localizado nas proximidades da Praça Vermelha
e do Mausoléu de Lenin.
“Que
tesão essa banheira... geil”.
Poucos
estudantes tinham um chuveiro ou uma banheira em casa em Berlim Ocidental. Alguns
não tinham nem mesmo um banheiro. “Que paradoxo, vamos mudar para a União Soviética, sugeriu alguém. Lembrou depois que uma garrafa de vodca custava agora muitos marcos ocidentais e o plano ficou por ali mesmo.
Meu
grupo não tinha atravessado o muro e embarcado num avião da Aeroflot no aeroporto da Berlim socialista para observar. E sim para ser observado. O soft punk juvenil de Kreuzberg
desfilava suas cabeças azuis e laranjas em todos os pontos turísticos com um prazer que só crescia quando o público para aquela mostra de liberdade política e estética eram
alemães como eles. Alemães menos afortunados, traídos pela geografia. Cabisbaixos
jovens turistas acorrentados a um muro, cidadãos da Deutsche Demokratische Republik que ainda não suspeitavam que o Glasnost de Mikhail Gorbachev chegara para mudar suas vidas. Para o bem e para o mal.
Dois anos depois, o muro de Berlim caía.
Dois anos depois, o muro de Berlim caía.
O
casaco cinzento e o passaporte brasileiro me aproximavam dos humildes: russos,
alemães orientais, tchecos ou cubanos. Afastei-me dos belos colegas com quem
repetira durante um ano fonemas russos no laboratório de línguas da
universidade. Fugi dos seres a quem me unira na incompreensão dos verbos perfeitos
e imperfeitos e me lancei sozinha nas caminhadas por Moscou.
Nas
proximidades do teatro Bolshoi (pronuncia-se "balshoi"), perguntei
a um passante por um "кино". Ele me
explicou que não era bom para os locais serem vistos conversando com estrangeiros. E partiu. Deixei Moscou sem ter visto um único cinema. Grande decepção para cinéfilos.
No
segundo dia conheci Serguei, um fenômeno da linguística e amante de
conversas com turistas estrangeiros. Aprendera sozinho uns quatro idiomas, inclusive o português que falava com sotaque europeu. Dei-lhe de presente meu grosso e amarelo
dicionário Langenscheidt português-alemão. E recebi dele durante anos longas cartas de quase amor em português impecável com elogios aos meus esforços
para aprender russo. Respondi a uma ou duas dessas cartas sem confessar que tinha desistido do idioma e de suas seis declinações poucos meses depois da viagem. Um dia o correio me
trouxe um grande pacote com dois dicionários russo-inglês que tenho até hoje. Pesadas lembranças negras de capa dura do gentil Serguei. Hesitei antes de chamá-lo de Serguei. Nome
tão óbvio para um russo.
No
terceiro dia de peregrinação solitária, conheci o napolitano Renzo (hesitei antes de chamá-lo de...) no café da manhã do hotel. Jornalista, baixinho, cinzento na aparência como eu e falante nativo de um belo idioma sem
declinações. Boa recomendação. Foi ele quem me levou a Tatjana e aos italianos
misteriosos. Segundo ele, amigos de amigos de amigos de Nápoles que o convidavam para um jantar moscovita com direito a acompanhante.
Estranho escrever sobre fatos que aconteceram há quase trinta anos. Detalhes supostamente pouco revelantes como um casaco vagabundo, minha provisória rejeição à parte da gramática russa e o vestido brilhante de Tatjana saltam em todas as cores na memória. Enquanto outros, muito dramáticos na época, aparecem desbotados. Como minha paixonite por um estudante asiático-alemão do nosso grupo que me fazia sofrer toda vez que ele olhava para outra mulher. Não me lembraria daquele exótico sentimento se não tivesse me sentado para escrever esta história.
Tatjana
era uma das jovens beldades russas que acompanhavam os italianos misteriosos. Um jantar
à luz de velas em uma mesa longa, luxuosamente preparada e repleta de vinhos
caros e iguarias raras em uma Moscou ainda tão mal abastecida e inconsciente do seu futuro. Renzo nada sabia dizer
diante do meu enorme ponto de interrogação. O amigo do amigo do amigo era o
anfitrião/chefão da estranha festa. Bem
vestido e educado a ponto de ignorar nosso estilo pouco glamoroso e nosso total despreparo
para a ocasião.
Você
me atraiu para o coração da máfia italiana em Moscou, disse a Renzo, me fazendo
de indignada, mas adorando aquele mergulho inesperado no mundo de Martin Scorsese e de John Le Carré. Existe uma máfia
italiana em Moscou?
Renzo sinceramente não sabia de nada.
Renzo sinceramente não sabia de nada.
Resolvi sorrir, comer, beber e conversar em russo com Tatjana.
Sem
declinações.