domingo, 15 de janeiro de 2017

Sem declinações. Moscou 1987


Café M, Berlim Schöneberg, anos oitenta

Na minha próxima visita, estarei declinando perfeitamente...

Prometi em um russo para iniciantes.

Já desconfiava que não haveria uma próxima vez. Não porque não quisesse, desejava muito voltar a Moscou. Mas a vida me avisava sutilmente que não permitiria repetições de extravagâncias como aquela semana de neve, socialismo e eterno suspense em novembro de 1987. Era agora ou nunca. Nominativo, acusativo, dativo e genitivo. Casos que eu já conhecia do alemão. E mais o instrumental e o prepositivo. Presentes do russo para a minha vida gramatical.

Tatjana, em um belo vestido de tecido brilhante, sorriu sem entender bem a piada. Já nasceu declinando e toda brilho com seus cabelos e olhos claros de filme de Walt Disney. Coitadinha, deve ter pensado, enquanto me mostrava seus perfeitos dentes moscovitas de uma brancura hollywoodiana. Está tão mal-vestida que o povo deve pensar que ela é daqui. Uma russa qualquer sob campanha anti-alcool de Mikhail Gorbachev. Uma russa que não sabe declinar. Nunca pensei que uma jovem sul-americana que vive em Berlim Ocidental usasse um casaco de segunda mão tão feio. Com tanta coisa bonita para se comprar por lá. Quem me dera.

Tatjana falava, sorria e declinava. Hesitei um pouco antes de chamá-la de Tatjana. Um nome tão óbvio para uma russa. No jantar luxuoso dos misteriosos italianos, seu dever era ser “bella”. E sorrir. Nem declinar teria sido necessário, pois aqueles homens de meia idade em ternos escuros -figurantes de mafiosos ou mafiosos verdadeiros- não falavam russo. Dias antes, eu tinha servido de tradutora para uma conversa entre dois outros italianos e duas senhoras no restaurante do hotel. Alguém me disse mais tarde que elas eram prostitutas locais. Meretrizes de meia idade com ares de donas de casa e simpático espírito de camponesas curiosas. Será que os italianos sabiam disso? Provavelmente, pois pareciam conhecer muito bem a cidade dos restaurantes sem comida e dos garçons sem modos. 

O resto do meu grupo de russo intensivo da Universidade Livre de Berlim não se interessava por italianos ou russas, bem ou mal-vestidos. Andavam orgulhosamente pela Moscou dos agasalhos pesados, dos gorros de pele e dos olhares desconfiados ou humilhados. Circulavam na capital das deslumbrantes estações de metrô, dos taxistas subornáveis e dos museus com imagens de fábricas e operários. Ouviam da guia local histórias de estudantes reprovados que se atiravam das janelas dos alojamentos estudantis. Com pausas para uma tigela de borsch e longos banhos de banheira no quarto do nosso hotel, esplendidamente localizado nas proximidades da Praça Vermelha e do Mausoléu de Lenin.  

“Que tesão essa banheira...  geil”.

Poucos estudantes tinham um chuveiro ou uma banheira em casa em Berlim Ocidental. Alguns não tinham nem mesmo um banheiro. “Que paradoxo, vamos mudar para a União Soviética, sugeriu alguém. Lembrou depois que uma garrafa de vodca custava agora muitos marcos ocidentais e o plano ficou por ali mesmo.

Meu grupo não tinha atravessado o muro e embarcado num avião da Aeroflot no aeroporto da Berlim socialista para observar. E sim para ser observado. O soft punk juvenil de Kreuzberg desfilava suas cabeças azuis e laranjas em todos os pontos turísticos com um prazer que só crescia quando o público para aquela mostra de liberdade política e estética eram alemães como eles. Alemães menos afortunados, traídos pela geografia. Cabisbaixos jovens turistas acorrentados a um muro, cidadãos da Deutsche Demokratische Republik que ainda não suspeitavam que o Glasnost de Mikhail Gorbachev chegara para mudar suas vidas. Para o bem e para o mal.

Dois anos depois, o muro de Berlim caía. 

O casaco cinzento e o passaporte brasileiro me aproximavam dos humildes: russos, alemães orientais, tchecos ou cubanos. Afastei-me dos belos colegas com quem repetira durante um ano fonemas russos no laboratório de línguas da universidade. Fugi dos seres a quem me unira na incompreensão dos verbos perfeitos e imperfeitos e me lancei sozinha nas caminhadas por Moscou.

Nas proximidades do teatro Bolshoi (pronuncia-se "balshoi"), perguntei a um passante por um "кино". Ele me explicou que não era bom para os locais serem vistos conversando com estrangeiros. E partiu. Deixei Moscou sem ter visto um único cinema. Grande decepção para cinéfilos. 

No segundo dia conheci Serguei, um fenômeno da linguística e amante de conversas com turistas estrangeiros. Aprendera sozinho uns quatro idiomas, inclusive o português que falava com sotaque europeu. Dei-lhe de presente meu grosso e amarelo dicionário Langenscheidt português-alemão. E recebi dele durante anos longas cartas de quase amor em português impecável com elogios aos meus esforços para aprender russo. Respondi a uma ou duas dessas cartas sem confessar que tinha desistido do idioma e de suas seis declinações poucos meses depois da viagem. Um dia o correio me trouxe um grande pacote com dois dicionários russo-inglês que tenho até hoje. Pesadas lembranças negras de capa dura do gentil Serguei. Hesitei antes de chamá-lo de Serguei. Nome tão óbvio para um russo.

No terceiro dia de peregrinação solitária, conheci o napolitano Renzo (hesitei antes de chamá-lo de...) no café da manhã do hotel. Jornalista, baixinho, cinzento na aparência como eu e falante nativo de um belo idioma sem declinações. Boa recomendação. Foi ele quem me levou a Tatjana e aos italianos misteriosos. Segundo ele, amigos de amigos de amigos de Nápoles  que o convidavam para um jantar moscovita com direito a acompanhante.   

Estranho escrever sobre fatos que aconteceram há quase trinta anos. Detalhes supostamente pouco revelantes como um casaco vagabundo, minha provisória rejeição à parte da gramática russa e o vestido brilhante de Tatjana saltam em todas as cores na memória. Enquanto outros, muito dramáticos na época, aparecem desbotados. Como minha paixonite por um estudante asiático-alemão do nosso grupo que me fazia sofrer toda vez que ele olhava para outra mulher. Não me lembraria daquele exótico sentimento se não tivesse me sentado para escrever esta história.

Tatjana era uma das jovens beldades russas que acompanhavam os italianos misteriosos. Um jantar à luz de velas em uma mesa longa, luxuosamente preparada e repleta de vinhos caros e iguarias raras em uma Moscou ainda tão mal abastecida e inconsciente do seu futuro. Renzo nada sabia dizer diante do meu enorme ponto de interrogação. O amigo do amigo do amigo era o anfitrião/chefão da estranha festa.  Bem vestido e educado a ponto de ignorar nosso estilo pouco glamoroso e nosso total despreparo para a ocasião.

Você me atraiu para o coração da máfia italiana em Moscou, disse a Renzo, me fazendo de indignada, mas adorando aquele mergulho inesperado no mundo de Martin Scorsese e de John Le Carré.  Existe uma máfia italiana em Moscou?  

Renzo sinceramente não sabia de nada.

Resolvi sorrir, comer, beber e conversar em russo com Tatjana.

Sem declinações.







domingo, 6 de novembro de 2016

To cool or not to cool? Jim Jarmusch e "Estranhos no Paraíso"


Em 1985 e após um ano vivendo nas proximidades da bela capital bavaresa, resolvi mudar de Munique para Berlim. Decisão espontânea aquela, mais um impulso do que uma reflexão. Como tantas outras, antes e depois. Das quais quase nunca me arrependi. 
Todo meu conhecimento da então "cidade do muro" vinha de um fim de semana coberto de neve em novembro de 1984. Andei sozinha pelas proximidades do exótico aeroporto de Tempelhof sem imaginar que moraria por ali de 1992 a 1998. Guardei na memória o nome "Platz der Luftbrücke" para descobrir mais tarde que naquele local os aliados tinham transportado suprimentos para Berlim Ocidental durante o bloqueio soviético em 1948/49.

Era como meu ser funcionava aos 24 anos. Preferia não ler nada ou quase nada sobre os lugares que planejava visitar. E esperar que eles mesmos me contassem sua história. Que contraste com a viagem a Nova Iorque toda planejada via Google ano passado.O que considero melhor? Não saberia dizer. Acho que gosto de ambos os métodos.

Depois de um primeiro dia solitário em Kreuzberg, um segundo dia em grupo em Berlim Oriental, do outro lado do ameaçador muro. Para a travessia do capitalismo ao socialismo, tivemos que nos dividir em três grupos: Checkpoint Charlie para os estrangeiros (uma italiana, uma inglesa e eu) e dois outros pontos de passagem para os amigos da Alemanha e de Berlim. Ocidentais. Não havia como reclamar da burocracia no local onde o trajeto oposto podia ser mortal para os cidadãos que o tentassem sem a permissão da RFA.


Do outro lado, a paisagem em novembro de 1984 era exatamente como mostra o filme "A Vida dos outros": neve, asfalto, frio e silencioso desconsolo.
O que Jim Jarmusch tem a ver com tudo isso? O único adorno de que me lembro no quarto onde me hospedei em Berlim era um pôster de Stranger than Paradise (Estranhos no Paraíso). Na época, eu nada sabia sobre o velho Jim (somos íntimos agora, embora ele nunca tenha me visto mais magra), mas algo na "coolness" da imagem me atingiu como um desafio. Berlim me convidava para um mundo totalmente diverso daquele que eu conhecera em Petrópolis, no Rio, na Itália ou nas paisagens idílicas do Lago de Starnberg. Mas não sabia se eu seria " cool" o suficiente para aceitá-lo.

Acabei aceitando o convite de Berlim. Por muitos anos. E convites para quase todos os filmes de Jim Jarmusch desde então. Gargalhei de forma muito pouco cool com Roberto Benigni em "Down by Law", andei no "Mystery Train", me encantei com a lindeza cool de Wynona Ryder em "Night on Earth" e com a morte poética de Johnny Depp ao som de Neil Young em "Dead Man". Queria até hoje aquela morte cool para mim.

Em 1995, o Festival de Berlim premiou os fãs de Jarmusch e do que há de mais cool no cinema americano com uma sessão dupla de Smoke (Nuvem de Fumaça) e Blue in the Face (Sem Fôlego) de Wayne Wang e Paul Auster. E Jim tem uma bela participação no segundo. Tenho memória boa para maratonas cinematográficas, mas dessa teria sido impossível me esquecer.

O que era cool nos anos 80 e 90, talvez seja apenas clichê no novo milênio. Mas como era bom ser cool naquela época. Ou em qualquer época. Mesmo fadado ao fracasso na prova, como explica magistralmente o personagem de Seymour-Hoffman em "Quase Famosos".

Por que escrevi isso tudo? O Espaço Itaú está exibindo "Stranger than Paradise". Quero rever e voltar a ser cool por duas horas.
Ou pelo menos tentar...

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Obdachlos, sem abrigo, homeless

  1. Foto no parque Hasenheide no verão de 2000. Meu último endereço em Berlim, de onde parti definitivamente em março de 2008, ficava na Allerstrasse no bairro de Neukölln, próximo ao aeroporto Tempelhof. O passeio em 2000 foi menos turístico do que para avaliar as mudanças externas e internas nos dois anos que haviam se passado desde então.  


Durante o (bom) papo do Pondé e Karnal com os "influenciadores digitais" agora na TV Cultura, alguém chamou a atenção para a agressividade presente na internet hoje em dia e questionou: será que os agressivos não são no fundo carentes querendo um pouco de atenção?
A pergunta me lembrou de um episódio que ocorreu em Berlim na década de 1990 e que descrevi assim há mais de 10 anos: 
Num ponto de ônibus do Kudamm, dei de cara com uma daquelas figuras típicas: um Obdachloser, um sem-teto daqui. Cabelo comprido que deve ser louro quando lavado, anéis, pulseiras e tatuagens
gens em cada palmo livre de pele, odor de álcool e de couro úmido da cabeça aos pés. Lata de cerveja na mão e uma revolta efervescente contra todos e tudo. 
Ofendia a gritos estrangeiros, judeus, palestinos, o motorista do ônibus que fechou a porta na sua cara, os turistas sorridentes que passavam num trenzinho idiota. Chutou a lata de lixo e o poste com os horários dos ônibus, quase quebrou a máquina de venda de passagens e arrancou os cartazes de propaganda. 
Senti uma súbita, exótica e terna simpatia por ele. 
Uma jovem turca, de véu na cabeça, se aproximava do ponto. O homem lançou-lhe um olhar ferino e já pude ver seus lábios se abrirem para pronunciar alguma expressão padrão para insultar os turcos. Não sei porque cargas d`água resolvi interferir.
“Será que você não anda dirigindo a sua raiva contra as pessoas erradas?”, perguntei, num tom pedagógico e politicamente correto que soou falso até aos meus ouvidos.
Ele me lançou um olhar azul-claro e surpreso, quase infantil, incompatível com toda a ira alardeada. A última vez que alguém tentou puxar conversa com ele deve ter sido há uns quinze anos. 
“Eu detesto todos eles, detesto mesmo”, continuou, desabafando numa nova explosão de revolta social. 
A perspectiva de um papo pareceu lhe agradar tanto que ele resolveu embarcar no mesmo ônibus que eu, feliz por um pouco de contato social. Nem pareceu notar o meu sotaque estrangeiro. Ou se notou, não deu a mínima. Atitude típica que já notei por aqui. Gente que blasfema contra estrangeiros, mas quando encontra um disposto a ouvi-los, acaba abrindo sempre uma exceção para um estrangeiro bonzinho. 
Disse que é viciado em heroína há vinte anos. Disse que não tem coragem de dar um tiro na cabeça. Disse que já trabalhou como puto e cafetão para arranjar dinheiro para a droga. Disse que já se jogou na frente de um carro em Stuttgart, mas que teve o azar de sobreviver. 
“Tá vendo, você ter sobrevivido foi um sinal de que ainda tem uma missão a cumprir”. 
Nem acredito que fui eu que disse uma bobagem desta. 
“Que missão, porra? A missão de me drogar até a morte?” 
Ponto para ele.
“Se você concentrasse sua energia em algo positivo, talvez não precisasse mais se drogar.”
“O que é que você chama de positivo? Varrer a rua, como o governo do porco obeso estava querendo obrigar a gente a fazer? Por uma meleca de 500 Marcos por mês...” 
“Por exemplo. Pois onde mais no mundo você acha que alguém recebe 500 Marcos por mês de graça, sem ter que fazer nada? Só aqui mesmo. No meu país, famílias inteiras vivem com muito menos que isso.. “
“Muito obrigada, grande consolo.” 
“A primeira coisa positiva que você podia fazer era tentar se livrar da droga”. Se esta conversa demorar muito, vou acabar pedindo alguém para colar um esparadrapo na minha boca. 
Desci do ônibus completamente arrasada diante da minha incompetência social. Não tenho a mínima ideia como é possível ajudar um sujeito destes. 
Talvez calando a boca e não falando tanta besteira.


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terça-feira, 28 de julho de 2015

Íntimo e pessoal

"Stop, look, listen to your heart"  
cantavam ontem de manhã Diana Ross e Marvin Gaye em uma emissora de rádio. E você implorava em silêncio para que o funcionário da loja não mudasse a estação, afugentando os anos setenta que você agora romantiza, e trazendo de volta o hostil canteiro de obras que se tornou o centro do Rio de Janeiro em 2015. Obrigada Diana, Martin e funcionário da loja que não trocou de estação.

À noite a NET libera seu Telecine, te mantendo desperta. Primeiramente com a beleza incomparável de Michelle Pfeiffer e a maturidade imponente de Robert Redford em "Íntimo e Pessoal". E às imagens do filme você logo associa outras, do mesmo ano de 1996. 
Não é assim que rever arte é sempre rever aquela porção de biografia, íntima e pessoal, que unimos a ela? Visões alegres e imagens tristes de um ano que viu partir os Mamonas Assassinas e os passageiros daquele voo da TAM. 

A jornada "down memory lane" continua pela madrugada naquele olhar de Ralph Fiennes, naquele riso de Juliette Binoche e na juventude de Jeremy Northam no "Morro dos Ventos Uivantes". Não importa se essa adaptação da obra tão intensa de Emily Brontë (que morreria logo depois de escrevê-la, aos trinta anos) não foi tão bem-sucedida.Como não regressar feliz com atores assim a 1992, quando não se sabia ainda o que esperar deles, com a perspectiva atual de quem já os viu passar por um Paciente Inglês, uma Lista de Schindler, um Carrington  e tantas outras belezuras?. Isso para falar somente dos esplêndidos atores britânicos, pois a irresistível francesa já surgira bem antes como o jovem furacão Tereza na "Insustentável leveza do ser" de 1988. 

O dia amanhece com a sabedoria do escritor alemão Heinrich von Kleist e seu Michael Kohlhaas, interpretado nas telas em 2013 pelo dinamarquês Mads Mikkelsen. O sono vai chegando embalado pela reflexão tão atual desse grande clássico no qual Kafka disse não poder pensar sem ser movido pelas lágrimas e pelo entusiasmo. Quem suporta injustiça calado é um tolo. Mas quando aquela eterna busca pela justiça a qualquer custo nos levará à beira do precipício? Tantas vezes, hoje e sempre. 
Resumindo: obrigada emissora de rádio, Marvin Gaye, Telecine, Juliete Binoche e todos os outros. Viver sem essa interação da arte com as próprias visões e reflexões seria a meu ver um inferno ainda maior do que aquele dos Morros Uivantes.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Virando a página: Uma tarde no Cine Joia

Café do Cine Joia em Copacabana

Quem me conhece pessoalmente ou me acompanha pelo Facebook, sabe do meu carinho pelo Cine Joia, o pequeno-grande cinema quase escondido no subsolo de uma galeria de Copacabana. Essa afeição tem uma série de motivos que já começam pela localização. Que delícia ver o tédio de mais uma galeria comercial como tantas outras ser interrompido pela presença de um cinema! De um cinema onde mostram um filme, óbvio. De um filme que vai me transportar para bem longe da monotonia de um centro comercial.
Outro motivo está no tamanho. O Cine Joia me lembra aqueles cineminhas com os quais nos deparamos de repente em lugares como o Quartier Latin. Bairros que conseguem manter a magia apesar da presença de centenas de turistas.  E eis que eu, já eufórica por estar ali em alguma ruazinha estreita de Paris, entre cafés e livrarias, ainda dou de cara com um pequeno cinema que conseguiu sobreviver na mais bela metrópole do mundo. E um cinema que sobrevive exibindo filmes iranianos ou Ingmar Bergman. A vida é justa. Às vezes. 

Berlim, outra metrópole cultural, também tem cinemas assim. Pequenos templos culturais em bairros menos visitados pelos turistas, oferecendo grandes clássicos, antigos e modernos. E sem dar a mínima para as poderosas exigências de bilheteria que produzem tantas obras descartáveis todos os anos. Assistiu, jogou fora. Assistiu, esqueceu ou rezou para esquecer. No bairro de Kreuzberg, havia nos anos 90 (quem sabe ainda ainda esteja lá!) um cinema com mini-salas com antigos (e confortáveis!) assentos de automóveis. Foi ali, quase deitada em um, que assisti "Como Água para Chocolate".  E me lembro de ter gostado mais da experiência inusitada da sala do que do filme em si. 

Mas o que realmente acaba me levando a um cinema, grande ou pequeno, é obviamente a programação. E no caso do Cine Joia, ter acompanhado um pouco como se desenvolveu essa qualidade toda que ele oferece atualmente dá um charme especial à experiência. Conheci o Raphael Camacho, jovem programador da sala, em uma comunidade de cinéfilos do Facebook. Já me considero cinéfila desde 1965, quando aos cinco anos de idade empaquei na porta do saudoso Cinema Petrópolis, sem querer me mover dali sem ter visto a Noviça Rebelde. Minha mãe, outra grande cinéfila na época, negociou sabiamente comigo a promessa de uma visita mais tardia ao cinema. Promessa que ela cumpriu. Assisti A Noviça Rebelde umas 5000 vezes depois disso, com ou sem minha querida genitora.

Mas voltando ao Raphael Camacho: cinéfilo simpatiza com cinéfilo, não importa a distância entre as gerações. Passei a seguir suas publicações nas comunidades de cinema do Facebook, em seu blog e no seu perfil da rede social. Nem sempre tínhamos a mesma opinião sobre um filme, mas como faz bem ver alguém seguir uma paixão com tamanha dedicação e apesar de tantos obstáculos. Raphael sempre quis trabalhar com cinema, embora uma parte de sua biografia quisesse afastá-lo desse caminho. E ei-lo aí, trabalhando com cinema, para nossa sorte. Minha sorte, de muitos jovens como ele e de toda uma geração de gente dez, vinte e trinta anos mais velha do que eu e que sempre lota os eventos culturais de Copacabana, mantendo em funcionamento muitos estabelecimentos do bairro que não estariam lá sem esse prestígio dado pela chamada "terceira idade".

Terça passada, consegui finalmente conciliar a agenda de aulas com uma matinê no Cine Joia e aproveitei para conhecer o charmoso café que foi inaugurado recentemente ao lado.  E onde em mesas coloridas o cinéfilo pode consultar obras como Conversas com Almodóvar". Comprei meu ingresso e me surpreendi com o tamanho da fila para entrar. Composta naquela sessão principalmente por pessoas mais velhas do que eu.

Acomodada na primeira fileira (sempre sento ali no Joia e na terceira ou quarta nos cinemas maiores, com pouco ou quase nada entre minha pessoa e a tela), mergulhei indiscretamente meu ouvido nas conversas que se iniciaram nas poltronas ao lado, antes do filme.
"Esse cinema é uma coisa muito boa para Copacabana"
"Aqui só passa filme bom"
"Que bom que o Joia reabriu"
"O Raphael é um amor, muito atencioso"

Sorria internamente quando surgiu o próprio Raphael e iniciou uma conversa com uma senhora muito idosa e muito cinéfila. Fiquei impressionada com sua cultura cinematográfica nos poucos instantes em que os dois conversaram. Do cinema sueco ao francês: ela tinha visto e expressava uma opinião clara sobre tudo. Pensei que quero ser assim quando crescer. E adorei ver o Raphael em sua função de anfitrião. Carinho e bons filmes: que boa mistura para um cinema!

O filme era uma comédia simpática com Hugh Grant. J.K. Rollins e a fantástica Marisa Tomei: Virando a Página (The Rewrite). Um filme que fala também de professores e de como a felicidade legítima pode estar bem distante daquela vinculada apenas ao status. Status que nós professores nunca tivemos. Nem no cinema, nem em lugar algum.

Mas como sabemos ser felizes em nossa profissão. Principalmente quando, entre uma aula e outra, sobra um tempinho para um filme no Cine Joia..

Julio Fregoso e eu na exibição de Taxi Driver no Cine Clube Joia em março de 2014





quinta-feira, 18 de junho de 2015

Manhattan: Ela, o cinema e eu



Keith e eu no Sutton Place Park, com vista para a Queensboro Bridge. Aqui Isaac (Woody Allen) e Mary (Diane Keaton) venciam a antipatia inicial de seus personagens em "Manhattan" e trocavam as primeiras frases em direção a um caso de amor. 
Effingham B. Sutton (1817-1891), que dá nome ao lugar, enriqueceu durante a Corrida do Ouro na Califórnia em 1849 e construiu brownstones  entre as ruas 57 e 59, às margens do East River. No início do século XX, a região era perigosa e frequentada por gangues. A série de cinco pequenos parques foi criada em 1938. 
Sutton Place também é uma locação do filme How to marry a millionaire (Como agarrar um milionário, 1953) com Marilyn Monroe, Lauren Bacall e Betty Grable. 
Em Sutton Place North, encontrava-se a casa de Alison (Claudette Colbert) no filme noir Sleep, my love (1948). Ali também vivia Mr. Antolini em um dos maiores clássicos da literatura americana e mundial, The Catcher in the Rye (O Apanhador no campo de centeio), obra de J.D. Salinger publicada em forma de livro em 1951. 
Lou Reed canta "let´s not walk down Sutton Place, you know everybody there`s got akitas (raça de cachorro) na canção High in the City
O local aparece em tantas obras que levaria tempo mencioná-las. E até o precoce adolescente William, o personagem de Patrick Fugit no meu querido Almost Famous (Quase Famosos, 2000), é visto correndo por aqui. 



Um amigo é principalmente aquele ser que nos conhece a fundo e mesmo assim nos chama de amigo. Mas há seres amigos que vimos poucas vezes na vida. O nova-iorquino Keith é um deles. Nos conhecemos através do francês Luc. Definir Luc como um amigo é um understatement. Acostumei-me ao longo dos anos nos quais convivemos no Rio, antes de sua partida para os USA, a vê-lo como family, um irmão nascido por acaso em outra família e em outro continente. Luc não é um grande cinéfilo:  a música, a França, a arte e o carinho são os laços mais fortes da nossa amizade. Keith é daqueles amantes do cinema que te enviam DVDs de filmes como Love Affair (Duas Vidas, 1939), a primeira versão de An Affair to remember (Tarde demais para esquecer, 1957), e Now, Voyager (A estranha passageira, 1942), conquistando para sempre teu coração. Há muito que queria me encontrar com ambos nesse território cultural que gerou tantas maravilhas cinematográficas chamado Nova Iorque.  E sem que eu tivesse que expressar claramente tal desejo, eles prepararam os poucos, porém inesquecíveis dias que passamos juntos.



Piano do compositor Cole Porter no Hotel Waldorf Astoria (301 Park Avenue). Outro estabelecimento que já abrigou quase tantos personagens fictícios quanto hóspedes reais. Quase todo mundo é fã de Cole, mesmo sem nunca ter ouvido falar dele. Impossível passar por essa vida sem ter ouvido canções como Night and Day ou I`ve got you under my skin. É considerado um dos maiores contribuidores do Great American Song Book.  Mais uma vez com a ajuda do querido Keith, consegui achar rapidamente o Peacock Room, onde se encontra o famoso instrumento. Ali uma placa pedindo para que ninguém toque no instrumento me surpreendeu: Quem ousa pôr um simples dedo mindinho no piano do meu amado Porter? Vai entender esse mundo... 
A lista de filmes com cenas no Waldorf Astoria é longa e fascinante. Deixo aqui um link que vale a pena ser consultado. Mas creio que minha favorita e a de muita gente que conheço é o tango dançado pelo cego coronel de Al Pacino com invejável elegância em Scent of a Woman (Perfume de mulher, 1992). 

http://www.imdb.com/search/title?locations=Waldorf-Astoria+Hotel+-+301+Park+Avenue,+Manhattan,+New+York+City,+New+York,+USA&



Abril de 2015 marcou a última temporada da série Mad Men, uma das minhas favoritas de todos os tempos, e pelo que pude notar também dos habitantes de Nova Iorque. Cartazes anunciando o grande final estavam espalhados por toda a cidade.

The Russian Tea Room. São tantos os filmes que visitaram esse lugar! Em Manhattan, Isaac (Woody Allen)  leva para lá seu filho com a mal-humorada Jill (Meryl Streep), a ex-esposa que o troca por outra mulher e escreve um livro revelando a intimidade do ex-casal enquanto atira sua cascata de cabelos loiros de um lado para o outro. A cena do pai e menino no RTR é uma deliciosa visita ao estilo que encerrou a década de 70. Big (Quero ser grande, 1988), When Harry met Sally (Harry & Sally, Feitos um para o outro, 1989), The Turning Point (Momento de Decisão, 1977) e Tootsie (1982) são outras produções famosas que ajudaram a escrever a história do local, assim como uma cena de Carrie Bradshaw com o "the Russian" (Mikhail Baryshnikov)  na sexta temporada de Sex and The City.  Mas a vida real também não quis deixar por menos: Você talvez tenha entregado seu casaco à coat-check-girl Madonna se andou por aqui no início dos anos oitenta. E até o britânico Mr. Bean ( Rowan Aktinson ) escolheu o RTR como local de seu casamento na vida real. O Russian Tea Room fica na 150W 57 St e foi fundado em 1927 por ex-membros do Russian Imperial Ballet como ponto de encontro para expatriados russos.



Sem ter assistido BIG (Quero ser Grande) uma única vez, minha expressão nessa foto é a de quem não sabe exatamente por que está ali, em frente a um teclado. Mas quem resiste a uma ordem do querido Keith? Outro motivo importante para a minha presença no local é o fato de que a F.A.O Schwarz oferece uma verdadeira raridade em Nova Iorque: um banheiro público. A famosa e mais antiga loja de brinquedos dos EUA foi fundada pelos irmãos alemães Friedrich, August e Otto Schwarz. No final do século XIX, ela se localizava na Union Square, mas está na Quinta Avenida desde 1931. Hoje em dia, ofuscada pela vizinha Apple, aguarda tristemente o final de seus dias, fato anunciado há poucas semanas. Na década de noventa, Woody Allen e sua Mighty Aphrodite (Poderosa Afrodite) também andaram por ali em uma cena em que seu personagem Lenny encontra a ex call-girl Linda (Mira Sorvino). 



Em uma tarde chuvosa de segunda-feira, após uma tentativa fracassada de visitar o Guggenheim (igualmente uma locação do filme Manhattan) e uma longa visita ao Metropolitan Museum, vim parar aqui por acaso. Na Dalton School (61 East 91 St,) estudava a namorada de 17 anos de Isaac em Manhattan, a encantadora Tracy, personagem de Mariel Hemingway. Entrando e saindo de diversas ruas na região, passei por belas casas e cafés, atraentes brechós e uma boa quantidade de mães e babás aguardando a saída das escolas. Uma caminhada pela margens do East River e pelo Carl Schurz Park também se mostrou um programa charmoso sob a chuva amena.  


Katz Deli, talvez uma das locações mais famosas da história do cinema. Aqui Sally (Meg Ryan) forjava aquele tão famoso orgasmo. A mesa onde ela e Harry (Billy Crystal) se sentaram tem uma placa desejando aos novos ocupantes o mesmo prazer. O sanduíche de pastrami é a marca mais conhecida do local que fica na 250 East Houston St, (pronuncia-se Hauston) no Greenwich Village. 


De Nova Iorque, a tour pelas locations continuou até Filadélfia. Após uma verdadeira pesquisa do querido Luc (à direita na foto), passamos por diversas em poucas horas. Aqui Keith  e ele estão na belíssima igreja de St. Augustine onde foi filmada uma cena do The Sixth Sense (O Sexto Sentido, 1999).  



Keith e eu em Filadélfia na tarde de Sexta, 17.04.2014. Nessa altura, já tínhamos visitados algumas dezenas de locações em Nova Iorque e em Philly. 



Tentando não fazer feio na tão famosa passarela de um dos maiores ícones do cinema de todos os tempos: por aqui (Lexington Avenue com 52nd St.) caminhou Marilyn Monroe na famosa cena da saia que se levanta em The Seven Year Itch  (O Pecado mora ao Lado, 1955). A filmagem provocou tanto tumulto que teve que ser refeita em estúdio e acabou de vez com o casamento de Marilyn com Joe DiMaggio.





  
fontes:

http://www.nycgovparks.org/parks/sutton-place-park/history

http://www.nycgovparks.org/parks/sutton-place-park/history

https://pt.wikipedia.org/wiki/Cole_Porter


domingo, 23 de novembro de 2014

Um dia a casa (ou o muro) cai. Sobre o filme Trem para Liberdade (Zug in die Freiheit). Teatro Maison de France, 18.11.2014


Mãe e filha se beijam entre as grades da Embaixada da República Federal Alemã em Praga em 1989 onde a filha tinha buscado asilo ao abandonar a antiga Alemanha Oriental.

Em 1984 estive pela primeira vez em Berlim Oriental. Éramos um grupo composto por estrangeiros (uma italiana, uma inglesa e eu), um rapaz do sul da Alemanha e um outro de Berlim Ocidental. Atravessamos o muro através de três diferentes pontos de controle e nos encontramos do outro lado. Pela primeira vez também em um país socialista, me sentia como em um filme de espionagem. Nos próximos cinco anos até a queda do muro, eu voltaria algumas vezes a Berlim Oriental. Uma vez acompanhando minha mãe que chegara do Brasil para me visitar em Berlim Ocidental e fervia de curiosidade em relação àquela Berlim socialista. Nas demais para comprar livros em russo, idioma que comecei a estudar em 1987 e que eram baratos por lá. 

Naquele dia de novembro a paisagem urbana era marcada pelo frio, pela neve e pelo céu nublado. Após um passeio por Alexander Platz e redondezas, fomos a uma festinha de aniversário de um jovem alemão oriental conhecido do berlinense e da qual nos tornamos rapidamente a grande sensação. Mulheres estrangeiras e wessis, alemães criados no capitalismo ocidental, em plena capital do socialismo a la RDA. O aniversariante não acreditava em seus olhos: uma sul-americana em sua casa. Brasilien, pronunciou ele em tom de admiração. "Gostaria muito de poder viajar e conhecer lugares como seu país, mas como você bem sabe não podemos ultrapassar o muro". Fiquei inicialmente sem saber o que dizer. Chegara há pouco tempo à BRD e ainda deslumbrada com tantos aspectos positivos dessa em relação ao Brasil falido e sem perspectivas que deixara com tanto alívio, não havia parado para pensar na situação de milhões de "outros alemães" que viviam nos limites de um muro. Hesitei antes de revidar, me sentindo algo hipócrita:  Muitos brasileiros também adorariam viajar, mas não têm meios para isso. É quase a mesma coisa.

"Não, não é a mesma coisa", respondeu ele com segurança.

Não, realmente não é a mesma coisa. Onde o obstáculo é a falta de dinheiro, ainda restam uma ou duas esperanças. Onde o obstáculo é uma parede que não se pode ultrapassar sem permissão sob o risco de pagar com a própria vida, o desespero pode levar a situações extremas. Assisti essa semana a convite do Consulado da Alemanha no Rio de Janeiro (que reflete sobre os 25 anos da queda do muro numa forma mais do que bem-vinda para uma cinéfila como eu) ao filme "Trem para a Liberdade" (Zug in die Freiheit, Alemanha 2014).       

O documentário mostra aquilo que não pude ver em 1989. Embora lá estivesse, em Berlim Ocidental, tão próxima ao cenário. Em parte por estar mergulhada em meus problemas que se resumiam basicamente em cumprir as exigências do estudo de Filologia Alemã e Portuguesa e a conseguir biscates para estudantes para me manter e pagar o aluguel. Em parte porque só mesmo ouvindo os protagonistas dos fatos que se passaram naquelas dramáticas semanas anteriores ao nove de novembro de 1989 para entender do que o ser humano é capaz quando alguém ou algo tenta lhe roubar a liberdade de ir e vir. 

O filme, ainda inédito no Brasil e etiquetado pela revista Stern como um Dokudrama, foi exibido em  inícios de novembro de 2014 na Alemanha. Ele mostra a trajetória dos milhares de alemães da antiga Alemanha Oriental que poucos meses antes da queda do muro buscaram asilo político na embaixada da Alemanha Ocidental em Praga. Mostra as semanas enfrentando o clima, a falta de conforto, de condições sanitárias básicas e principalmente a incerteza sobre seus destinos. Tudo isso em nome de um único objetivo: abandonar uma pátria que não lhes concedia a liberdade de deixá-la e alcançar a outra Alemanha. Aquela Alemanha capitalista da qual tão mal ouviram falar toda uma vida. Mostra a luta dos diplomatas, principalmente do embaixador e de sua esposa, para ajudá-los. Mostra o medo e o suspense causado pela situação imposta pela pátria de origem: Os fugitivos poderiam deixar a embaixada rumo à Alemanha Ocidental, mas o trem para a liberdade teria que passar pelo próprio país que tanto queriam abandonar. E onde teriam que entregar suas identidades aos severos membros da Stasi e seguir viagem em condição de ser humano sem lenço e sem documento. Mas o documentário mostra principalmente a falência de um Estado que se sustentava à base de uma exausta retórica e as ruínas de uma política em sua eterna tentativa de transformar através da linguagem uma verdade que um dia não se deixou mais domesticar.

E a verdade era que a maioria dos cidadãos da antiga República Democrática da Alemanha não queriam viver em sua pátria, aquele país tão perfeito aos olhos do partido. Preferiam a imperfeição da República Federal da Alemanha. E basta.